Cioran, leitor de Nietzsche

Rodericvs Ignativs
30 min readDec 27, 2020

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Trata-se de tematizar a maneira como Nietzsche é recebido e apropriado pelo pensador romeno de expressão francesa, submetendo-se ao seu próprio “filtro seletivo”. As mais apaixonadas homenagens e as mais ferozes críticas se articulam no discurso cioraniano acerca desse titã filosófico, “e muito mais que um filósofo”.

“Um pensamento fragmentário reflete todos os aspectos de vossa experiência; um pensamento sistemático só reflete um aspecto, o aspecto controlado, e por isso mesmo empobrecido. Em Nietzsche, em Dostoiévski, exprimem-se todos os tipos de humanidade possível, todas as experiências. No sistema, só o controlador fala, o chefe. O sistema é sempre a voz do chefe: é por isso que todo sistema é totalitário, enquanto que o pensamento fragmentário permanece livre.”[1]

Nanos gigantum humeris insidentes

Nietzsche é um autor tão problemático quanto incontornável. Se há um gigante cuja magnitude titânica dividiria a história do pensamento moderno em duas metades, antes e depois de si, é ele — que desejou, ao final da vida, fundir numa única máscara de divina loucura as figuras do Crucificado e do Dionísio pagão. Seria preciso alçar-se às suas alturas vertiginosas e de lá contemplar os abismos da existência — sem precisar subir nos ombros do gigante. É como se, após Nietzsche, já não pudéssemos ser senão nietzschianos ou anti-nietzschianos — admitindo-se a impossibilidade de um tertium datur (“terceiro incluído”): as duas coisas ao mesmo tempo.

Por mais que alguns acadêmicos venham a rejeitá-lo como filósofo (não passa de um “poeta”, ou de um aspirante a “profeta”), o fato é que a obra de Nietzsche possui um elemento verdadeiramente universal, algo que aspira — não só como a verdadeira filosofia, mas também a grande arte — à universalidade do ser humano (demasiado humano), podendo tocar as mais profundas cordas da experiência humana.[2] Nietzsche é um pensador tão universal quanto a tragicomédia da vida. É por essa nota ou timbre universal que ele pode e deve ser reconhecido como filósofo, muito embora deva-se acrescentar que é “muito mais que um filósofo”,[3] como observou um de seus “herdeiros” filosóficos mais originais, e menos fiéis: Emil Cioran (1911–1995). A sua obra também se pretende tragicamente universal.

Um interessante caso de “angústia da influência”

O tema deste ensaio não é Nietzsche, mas Cioran, leitor de Nietzsche. Se é verdade, como escreveu D’Alembert, que “cada século, e o nosso sobretudo, teria a necessidade de um Diógenes”,[4] e se Nietzsche mereceu as referidas honras no século XIX, cabe a Cioran o mesmo papel no século XX.[5] A potência crítica da sua obra (no duplo sentido do ato de criticar e também de crise), no limite inclassificável, faz deste enigmático autor um implacável mestre da suspeita, um terrível “desilusionista”.

Emil Cioran (1911–1995) é um filósofo e escritor de origem romena que mantém importantes afinidades com Nietzsche, mesmo se ele se revela, muitas vezes, anti-nietzschiano — ele também uma natureza titânica, ainda que julgue preferível passar -se por anão ou, como Odisseu diante de Polifemo, por ninguém. Singularidades à parte, ao se falar de Cioran, na paisagem intelectual europeia contemporânea, é inevitável evocar, mais cedo ou mais tarde, a figura de Nietzsche: é um de seus mais importantes precedentes filosóficos, e uma de suas maiores “influências” — para além da filosofia. “Angústia da influência” é um conceito de Harold Bloom que se aplica muito bem à filiação Cioran-Nietzsche. Se o autor romeno divisará, no Breviário de decomposição (seu primeiro livro francês, e um divisor de águas no conjunto da obra), uma “Genealogia do fanatismo” e anunciará o seu “Adeus à filosofia”, declarando-se um “Antifilósofo”, “Pensador de ocasião”,[6] tudo isso tem em Nietzsche, de certa forma, um horizonte referencial, uma baliza e um ponto de não-retorno.

Nascido num bucólico vilarejo aos pés dos montes Cárpatos, na Transilvânia (à época, pertencente ao Império Austro-húngaro), Cioran talvez não tivesse conquistado o renome mundial não fosse a decisão de expatriar-se e tornar-se um escritor de língua francesa. Em virtude de uma écriture impecavelmente límpida, elegante e envolvente, combinada a um lirismo tipicamente balcânico, o pensador romeno viria a ser aclamado pelo poeta Saint-John Perse como o maior estilista de língua francesa do século XX, ao lado de Paul Valéry. A decisão de mudar de idioma implica a dolorosa transição de um passado romeno, marcado por um nietzschianismo exaltado e febril, a uma nova identidade autoral que pressupõe, por sua vez, uma vontade de ruptura radical com aquele passado. A partir do Précis de décomposition (1949), que venceria o prêmio Rivarol para escritores estrangeiros, Emil se tornará E.M. Cioran, e assim, “um autor desconhecido, um ‘bárbaro’ das margens da Europa, encontrará os elementos para a criação de uma nova persona autoral. Emil, o romeno, o transilvano, torna-se o críptico E.M., e por este ato de abreviação batismal reinventa-se como um autor ocidental ‘civilizado’.”[7]

Que fique claro: não se trata de dizer que Cioran é “nietzschiano” — não o é mais que “schopenhaueriano”, “pascaliano”, “kierkegaardiano”, “dostoievskiano”… A conclusão do pensador romeno, a partir de suas leituras schopenhauerianas e nietzschianas, é a dupla impossibilidade de negar e de afirmar a Vontade (“de vida”, “de potência”), sem experimentar certo hamletismo. “Cada desejo humilha a soma de nossas verdades e obriga-nos a reconsiderar nossas negações. Sofremos uma derrota na prática; no entanto, nossos princípios permanecem inalteráveis…” E eis que, quanto mais encontramos razões para negá-lo, num elã místico de fuga mundi, mais nos descobrimos “filhos deste mundo”, “submetidos aos apetites como ascetas equívocos, donos do tempo e escravos das glândulas”.[8]

Do ponto de vista da lucidez reivindicada por Cioran, não é possível seguir o que quer que seja, aderir a qualquer doutrina filosófica ou religiosa, esposar esta ou aquela verdade, sustentar esta ou aquela crença. “Quem refletiu muito sobre a eternidade, a morte, a vida, o tempo e o sofrimento, é impossível que tenha um sentimento definido, uma visão precisa e uma convicção determinada sobre todas essas coisas. […] A ambivalência e a ambiguidade pertencem às realidades últimas”,[9] e “apenas tem convicções aquele que nada aprofundou.”[10] Cioran é como esse mendigo parisiense, músico de rua, que costumava visitá-lo em sua mansarda no Quartier Latin: um tipo “corroído por interrogações essenciais e contente de estar atormentado por tão notável flagelo”, que sempre vinha cheio de “perguntas sobre Deus, a matéria, o mal, etc.” — às quais o anfitrião, “é claro”, não podia responder.[11] Filosofar, para Cioran, é ruminar o Insolúvel.

“Chegamos a um ponto da história em que é necessário ampliar a noção de filosofia”, afirma ele numa conversa com o filósofo espanhol e amigo Fernando Savater. E esse ponto da história é pós-nietzschiano. Aquele músico de rua que carregava em si todas as perguntas do mundo e nenhuma resposta, afligido pelo Insolúvel, eis para Cioran um verdadeiro filósofo. Tornar-se o que se é: máxima paradoxal, tão imperiosa quanto irrealizável. E Cioran, no processo de tornar-se ele mesmo, escreve (após Nietzsche): “Busquei em mim mesmo meu próprio modelo. Para imitá-lo, dediquei-me à dialética da indolência. É tão mais agradável fracassar na vida…”[12]

Ironias à parte, a filiação Cioran-Nietzsche nos apresenta um interessante caso de “angústia da influência”, no entendimento de Harold Bloom: o que ligaria Cioran a Nietzsche é “um profundo ato de leitura que é uma espécie de paixão por uma obra”, seja ela literária ou de outro gênero, e é “provável que essa leitura seja idiossincrática, e quase certo que seja ambivalente, embora a ambivalência possa estar velada”.[13] Cioran não só admite a possibilidade do tertium datur, como a reivindica. A propósito de Nietzsche, e de todas as coisas: “Estar com a verdade contra ela não é uma fórmula paradoxal, porque todos os que compreendem seus riscos e revelações não podem deixar de amar e de ao mesmo odiar a verdade.”[14] Num estado de coisas em que o oposto do niilismo é o niilismo, e estar contra Nietzsche é ainda um reconhecimento de sua veraz enormidade, o filósofo romeno só poderia ser “nietzschiano” às avessas. “Medimos sua fecundidade”, escreve ele, “pelas possibilidades que [Nietzsche] nos oferece de negá-lo sem esgotá-lo.”[15] Pela inspiração ou pelo desgosto, tudo é pretexto para retornar a esse que se quis, a um só tempo, “décadent e começo”,[16] e cuja fecundidade deriva da pletora de postulados contraditórios que nos permitem ruminá-lo ad nauseam.

Cioran é uma figura singular na paisagem intelectual do século XX, assim como Nietzsche o fora no XIX, um autor sui generis cuja obra inquietante, e no limite inclassificável, hostil a definições, etiquetas e reducionismos afins. Muitas são as categorias que tentam capturá-lo, nenhuma se sustenta sem a concorrência de sua contrária; todas falham em enquadrá-lo. Filosofia? Literatura? Nem uma coisa nem outra? Um híbrido de intencionalidade filosófica e expressividade artística? Uma coisa é certa: “Nas antípodas do filósofo-professor-profissional, Cioran remete ao pensador vocacional que viveu seu pensamento, mas não do que pensou.”[17]

Formado em filosofia pela Universidade de Bucareste em 1932, logo cedo ele dará “Adeus à filosofia” para dedicar-se a um gênero de criação que não poderia deixar de causar perplexidade (quando não indignação), justificando assim o título de prior atribuído a ele por Peter Sloterdijk,[18] da “Ordem da Santa Temeridade” imaginada por Nietzsche na Genealogia da moral.[19] É graças à insônia atravessada na juventude, e que mudaria a sua vida radicalmente, que Cioran se desilude da filosofia: a perda do sono equivale à perda da capacidade de acreditar na theoreia filosófica. Buscando em Platão e em todos os filósofos algum alento para atravessar o calvário das noites em branco, o jovem Cioran descobre que “não existe filosofia criadora. A filosofia não cria nada. […] Nenhum sistema filosófico me deu o sentimento de um mundo independente de tudo o que não é ele”, ao contrário da Música. “É doloroso, mas é assim: podeis ler todos os filósofos que quereis, nunca sentireis que vos tornaste um outro homem. Naturalmente, dentre os filósofos excluo Nietzsche, que é muito mais que um filósofo.”[20]

A recepção de Nietzsche no contexto romeno

Cioran foi um proeminente membro da chamada tânăra generatie (“jovem geração”) de 1927, da qual também fizeram parte outros romenos que se consagrariam em suas respectivas áreas, como o historiador Mircea Eliade e o dramaturgo Eugène Ionesco. Essa geração intelectual esteve em grande medida voltada à cultura (filosófica, literária) alemã, em detrimento de outra grande potência cultural estrangeira, a França (modelo estrangeiro da velha guarda, vista pela nova geração como um empecilho ao florescimento cultural de uma nova e grandiosa Romênia). Trata-se, grosso modo, de um “filogermanismo”, de tipo vitalista-existencialista, paralelamente a uma “francofobia” antirracionalista; de onde a valorização do elã vital, com tudo o que ele implica de irracional e problemático, intenso e transbordante, como sinal de autenticidade, e o desprezo por tudo o que é puramente formal, racional, comedido, sensato, expressões de uma atitude intelectual inautêntica, marcada pela impostura e pela futilidade. Voltaire seria, nesta visão, a perfeita antítese de Nietzsche, que pagou caro — com a saúde, mental e física — por cada uma de suas afirmações.

Segundo Ciprian Vălcan, autor de um primoroso estudo sobre a concorrência das influências culturais alemãs e francesas na obra de Cioran, a jovem geração de 1927, liderada por Eliade, coloca-se sob o signo de uma “vontade de autenticidade transbordante”, de uma existência heroica e criadora calcada na experiência viva e pessoal, sem o filtro da razão abstrata e sistemática. Eles encontram na cultura alemã, e a fortiori em Nietzsche, o exemplo maior desse ideal filosófico e artístico de herança romântica. Nesse contexto, explica Vălcan, muitos jovens intelectuais se veem imersos num “clima espiritual nietzschiano” mesmo antes de ter lido Nietzsche, e, assim,

[…] submetidos a uma dupla impregnação das ideias nietzschianas, tanto pela leitura dos textos de Nietzsche quanto pela assimilação de alguns núcleos de reflexão que circulavam à época, e que se tornariam verdadeiros lugares-comuns, utilizados como armas ideológicas na luta contra as velhas gerações, consideradas incapazes de entender o fôlego da novo época, a necessidade de autenticidade e de mudança proclamada pelos mais proeminentes intelectuais convertidos ao vitalismo.[21]

Irracionalismo: outra maneira (menos elegante) de dizer “vitalismo”. Trata-se da problemática — existencial, civilizacional — do niilismo, fomentada numa atmosfera de crise, instabilidade e absurdidade. Camus diria que Cioran faz parte de uma tradição do “pensamento humilhado”.[22] Nesse contexto específico, o problema do niilismo europeu, conforme diagnosticado e esmiuçado por Nietzsche menos de um século antes, não deixa de ser uma “especialidade” romena, tanto quanto alemã (ou russa): em matéria de sentimento trágico, de consciência do absurdo e da gravidade da condição humana, os romenos não ficam nem um pouco atrás das grandes nações produtoras de niilismo. Vasilica Cotofleac, filósofa romena radicada na Venezuela, fala da Romênia como uma pátria sem “contornos” nem “conteúdos” claramente delimitados, de modo que o romeno “deve conservar sua ‘verticalidade’ como sobre areia movediça; alcançar a estabilidade no… instável. Fazer filosofia nestas condições mostra-se problemático; pode até parecer impossível.”[23] Nesse cenário de instabilidade, constantemente transfigurado pelas convulsões da História, a filosofia pode muito bem exprimir-se como um grito de desespero. Nenhuma necessidade de um Nihilismus de importação: os romenos sabem, por experiência própria, e como que por uma sabedoria de vida milenar, “o que é” o nada.

O itinerário espiritual de Cioran mostra-se marcado, desde o berço, pelo dilaceramento de uma crise identitária,[24] pelo progressivo desenraizamento e pela ideia de “exílio metafísico” (essencial, atópico, “fora do tempo”). Cioran fará do estrangeirismo a sua insígnia, cantando “as vantagens do exílio” enquanto condição de “não-pertencimento” favorável ao despertar espiritual: “Todo homem que se cria raízes está perdido, abdica de uma liberdade essencial”, observa Sylvie Jaudeau: “O homem só é verdadeiramente homem na solidão, opondo-se ao meio circundante. O desprendimento espiritual começa por um desenraizamento do solo.”[25] Paradoxalmente, quanto mais instável e problemática a existência, mais difícil desenraizar-se, desprender-se. Uma identidade dilacerada (individual ou nacional) pode ser infinitamente mais orgulhosa, e apegada ao seu eu, do que uma segura de si: “Quem se odeia não é humilde”,[26] lemos em Do inconveniente de ter nascido. Trata-se, no caso, de um orgulho de vítima, dos “humilhados e ofendidos”, para emprestar a fórmula de um título de Dostoiévski.

A propósito da complicada romenidade de Cioran, Ilinca Zarifopol-Johnston fala de uma “paixão negativa” vinculada a uma “identidade negativa”: “O ‘inconveniente’ de ser romeno — que só posteriormente será universalizado como o ‘inconveniente de ter nascido’ — constitui a origem de sua obra. Cioran escreve sobre a Romênia porque não pode dissociar o destino dela do seu próprio.”[27] A biógrafa romena (radicada nos Estados Unidos) se refere a Schimbarea la faţa a României, “Transfiguração da Romênia” (1936): livro-manifesto representativo dos descaminhos políticos da juventude de Cioran (marca indelével de seu “passado infame”, nas palavras de Marta Petreu[28]). Trata-se do seu envolvimento, a exemplo de muitos da mesma geração, com o movimento legionário, ou Guarda de Ferro. Transfiguração da Romênia é a expressão maior da súbita radicalização política de Cioran (análoga à de seus companheiros) durante a década de 1930 — ele que, entre 1933 e 1935, está na Alemanha a estudos, graças a uma bolsa da Fundação Humboldt, onde terá a vivência direta do fenômeno ascensional do nazismo. Atraído por algo que, na sua visão, faltava ao seu país (o coletivismo e o orgulho nacional, a mística em torno de um ideal, encarnado por um líder) e que, por outro lado, fazia da Alemanha uma nação grandiosa, dotada de um destino, Cioran idealizará então, para a sua Romênia, uma ditadura capaz de “transfigurar” o povo e arrancar-lhe de seu sono milenar.

Se a sorte de Nietzsche foi, como aponta Maurice Blanchot, ser entregue a falsários e chauvinistas de plantão,[29] pode-se dizer que o nietzschianismo furibundo do jovem Cioran, índice do clima espiritual de toda uma geração, resulta de uma dupla (e problemática) absorção que se dá tanto pelo trabalho de leitura dos textos quanto pela assimilação cultural de certos mitos construídos em torno de Nietzsche (em grande medida graças ao próprio Nietzsche, mestre na arte de forjar-se máscaras). O fanatismo do jovem Cioran não carece de nexo histórico com a usurpação de Nietzsche e a instrumentalização ideológica de seu Übermensch pelo nacional-socialismo europeu: transplantado para o conturbado contexto romeno entre guerras, ele encontrará um correlato no slogan legionário: “Um novo homem, uma nova Romênia”. Se Nos cumes do desespero (1934), o primeiro livro de Cioran, é a expressão de um drama demasiado interior, de uma crise individual e solitária, Transfiguração da Romênia, publicado dois anos depois, é a contrapartida mundana e objetiva, social e histórica, desse mesmo drama: dois livros de um desesperado, duas expressões discrepantes de uma mesma crise. A partir do Précis de décomposition, a nova identidade autoral de (E.M.) Cioran — após a II Guerra e a perda de um grande amigo, o poeta judeu romeno Benjamin Fondane, assassinado em Auschwitz — é motivada por uma reação violenta contra si mesmo, suas antigas crenças, ideais e esperanças, tão inconfessáveis quanto utópicas.

Antes de chegar à lucidez como princípio de vacuidade e antifanatismo, Cioran provaria o veneno do fanatismo, essa “tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror”.[30] O Précis de décomposition é o livro de um ex-fanático. Não por acaso o texto inaugural se intitula “Genealogia do fanatismo”, e o seguinte, “O Antiprofeta”, só confirma a impressão de que há nos escritos desse estrangeiro enigmático algo de profundamente autorreferencial, se não mesmo autobiográfico: são textos palinódicos, no sentido de retratação, de um ajuste de contas (consigo mesmo), comunicando, no subtexto, a vontade ou necessidade de abjurar suas antigas ilusões e os extravios delas decorrentes. O Breviário de decomposição simboliza, filosófica e literariamente, uma “pequena morte” (do seu antigo eu) e o subsequente “renascimento” em um novo idioma, com sua forma mentis específica, ao qual o seu (novo) eu deve doravante submeter-se, como a uma “camisa-de-força”. Não se equivocará quem acusar no título do texto inicial uma referência necessária, nem um pouco acidental, à Genealogia da moral. O autor do Précis fará uma correlação entre décadence e fanatismo: “O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma?”[31] Ninguém que se queira criador de valores está absolutamente imune a essa “tara capital”, pensa Cioran, pois só se cria valores para impô-los, mais cedo ou mais tarde, aos demais, para transformá-los em dogma e em lei: “Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas”,[32] e a História universal é a aventura temporal do animal fanático por natureza.

O retrato de Nietzsche segundo Cioran

A ambivalência e a ambiguidade são traços fundamentais da atitude de Cioran em relação a Nietzsche. Ela é indicativa da autoimagem do próprio Cioran, da maneira como ele pretende constituir a sua identidade autoral no confronto com Nietzsche. Assim, ao expor contradições do filósofo alemão, ele chama a atenção para as suas próprias (não como defeito, mas como signo de vitalidade e probidade intelectual), do mesmo modo que quando afirma a sua singularidade marginal e solitária, é para reconhecer (e enaltecer) em Nietzsche, antes dele, essa mesma qualidade. De onde a figura do “Antifilósofo”: cabe a Nietzsche, “mestre na arte de pensar contra si próprio”,[33] o mérito de ter “sabotado” a filosofia acadêmica, despojando o espírito de suas amarras morais e metafísicas e introduzindo nele a exigência fragmentária — princípio de veracidade e probidade intelectual.

Espírito nômade, é um especialista em variar seus desequilíbrios. Sustentou sempre o pró e o contra de tudo: é o procedimento dos que se dedicam à especulação por não haver podido escrever tragédias ou dispersar-se em múltiplos destinos. O certo é que Nietzsche, expondo suas histerias, nos desembaraçou do pudor das nossas; suas misérias nos foram salutares.[34]

Se por um lado Nietzsche é visto por Cioran como um autor genial, e como que o filósofo exemplar (pois “Antifilósofo”), em virtude de sua natureza trágica e sumamente temerária (dir-se-ia “titânica”), por outro será submetido a um filtro derrisório mediante o qual aparece como um tipo “ingênuo”, uma “alma inocente”, um “histérico” sonhador e um “arauto de ilusões”. Como observa Vălcan, Cioran não perde a oportunidade de demarcar sua distância em relação a Nietzsche, buscando reafirmar sua própria singularidade: “O catálogo de objeções pontuais que Cioran faz a Nietzsche parece composta de modo a colocar em evidência precisamente os aspectos do pensamento do filósofo alemão que o impedem de ser um outro Cioran”,[35] um “Cioran avant la lettre”.[36] Nas entrevistas que concedeu, muitas das quais compõem o volume Entretiens (1995), Cioran fala de Nietzsche como

[…] um solitário que não conviveu muito com seus semelhantes, um homem, no fundo, digno de pena, isolado, de modo que lhe faltava a experiência imediata do outro. […] No fundo, toda sua visão das coisas, sua vida também, parece-me demasiado eufórica. Nietzsche é interessante e sedutor, mas suas conclusões não me parecem nem pertinentes nem verdadeiras.[37]

Seria ocioso debater a fidedignidade do retrato; Cioran não pretende provar nada, impor como verdadeira a sua visão sobre Nietzsche. Para ele, o “culto da vitalidade” e a “idolatria da força” de que Nietzsche dá prova são “menos um sinal de esnobismo evolucionista que uma tensão interior projetada para fora, uma embriaguez que interpreta e aceita o devir”.[38] Mas reconhece consigo mesmo que “era necessário passar por aí, pela orgia filosófica, pelo culto da vitalidade”, como uma etapa necessária no seu amadurecimento espiritual, para a conquista de uma “lucidez implacável nutrida justamente das decepções da juventude”:[39] “Os que se negaram a isso jamais conhecerão as suas consequências, o reverso e as caretas desse culto; nunca compreenderão as raízes da decepção.”[40]

Segundo Ciprian Vălcan, essa conclusão significa “a ultrapassagem do culto a Nietzsche e sobretudo a rejeição da ideia do surhomme”, que no passado teria sido, argumenta o exegeta romeno, acolhida por Cioran como um “axioma irrefutável”.[41] Há controvérsias. Se nos primeiros livros romenos de Cioran não há, como argumenta Vălcan, “nenhuma adesão ao ‘pessimismo implacável’ de Schopenhauer”,[42] tampouco há adesão ao que seria uma atitude nietzschiana contrária (tragicismo, afirmação da Vontade, Amor fati, etc.). Desde o início, o pensamento de Cioran oscila, flutua, experimenta entre uma e outra atitude que se convenciona vincular aos respectivos filósofos alemães. Cioran nunca foi mais “nietzschiano” do que “schopenhaueriano”, para nos limitarmos a estas duas influências apenas. O seu hamletismo sempre triunfou sobre qualquer parti-pris, qualquer posição definitiva e convicta. Prova disso é o que encontramos no Livro das ilusões (1936), seu segundo livro romeno, que é — como o seguinte, Lágrimas e Santos (1937) — a expressão de uma crise religiosa e mística marcada pela obsessão das santas. Aí, ele confessa: “Me incomodaria que me qualificassem de discípulo de Schopenhauer ou de Nietzsche; mas poderia conter minha alegria se me chamassem o discípulo das santas?”[43] E compara Nietzsche a Pascal, cujas “contraverdades” deveriam ser murmuradas, enquanto que Assim falou Zaratustra — um “sistema de ilusões” [44] — foi feito para ser gritado. Por fim, também neste livro encontra-se uma importante consideração em torno da Wille zur Macht nietzschiana:

Para quem a vida é a realidade suprema, sem ser uma evidência, não seria “se podemos ou não amar a vida” a pergunta que mais pode atormentá-lo? […] É fascinante e amargo ao mesmo tempo não saber se se ama ou não a vida. Preferiríamos não ter de dizer um sim ou um não, só para não dissipar uma inquietude prazerosa. Um sim significa a renúncia a conceber e sentir outra vida; um não implica medo do caráter ilusório de outros mundos. Nietzsche se enganou quando, absorvido na revelação da vida, descobriu que a vontade de potência era o problema central e a modalidade essencial do ser. O homem colocado diante da vida quer saber se pode conceder-lhe seu último assentimento. A vontade de potência não é o problema essencial do homem; este pode ser forte sem ter nada. A vontade de potência nasce muitíssimas vezes em homens que não amam a vida. Quem sabe se a vontade de potência não é uma necessidade de fachada para a vida![45]

“Vontade de Potência”, “Eterno Retorno”, “Além-do-homem” et al.: fórmulas que nada significam para Cioran. Representam uma dimensão de Nietzsche da qual o leitor romeno se sente distante e alheio: não lhe dizem respeito, não correspondem à sua experiência pessoal. Para Cioran, o niilismo não é um problema historicamente determinado que se possa “ultrapassar” através de um projeto super-humano de transvaloração de todos os valores. É antes um problema estrutural inerente à condição humana, à medida que o zoon logikon acaba sempre deparando-se com o espectro de um “nada” que o habita e no qual se encontra existencialmente envolvido. O niilismo — que não é (só) europeu, nem moderno, mas ontológico e atemporal — só pode ser suportado lucidamente e experimentado até o esgotamento, ao ponto em que o Nada perca todo seu fascínio sinistro. Nenhuma “grande saúde” no horizonte, nenhum novo mundo, nenhuma Aurora — e se o jovem Cioran, insone e desesperado, insiste na esperança do contrário, as decepções que conformam o seu itinerário espiritual farão com que ele termine por se resignar a essas amargas evidências.

O Nietzsche duradouro, que subsiste e segue contando para Cioran, é “o perito em decadências, o psicólogo agressivo, não somente observador como os moralistas, que escruta como inimigo e se cria inimigos; mas seus inimigos ele os extrai de si mesmo, como os vícios que denuncia. […] Tendo praticado a psicologia como herói, propõe aos apaixonados pelo Inextricável uma diversidade de impasses.”[46] Ademais, “se Nietzsche, Proust, Baudelaire ou Rimbaud sobrevivem às flutuações da moda, devem isso à gratuidade de seu fel. O que faz durar uma obra, o que a impede de envelhecer é sua ferocidade. Afirmação gratuita? Considere o prestígio do Evangelho, livro agressivo, livro venenoso entre todos.”[47] Em um texto profundamente autorreferencial, intitulado “Verdades de temperamento”, encontramos uma importante menção a Nietzsche (aqui, junto a Kierkegaard), não sem relação com a sua referida psicologia transgressora e “heroica”:

Frente a pensadores desprovidos de patético, de caráter e de intensidade, e que se moldam sobre as formas de seu tempo, erguem-se outros nos quais se sente que, em qualquer momento que houvessem aparecido, teriam sido semelhantes a si mesmos, despreocupados de sua época, extraindo seus pensamentos de seu próprio fundo, da eternidade específica de suas taras. Só tomam de seu meio os contornos, algumas particularidades de estilo, alguns aspectos característicos de uma evolução dada. Apaixonados por sua fatalidade, evocam irrupções, fulgores trágicos e solitários, próximos do apocalipse e da psiquiatria. Um Kierkegaard, um Nietzsche, mesmo que houvessem surgido no período mais anódino, não teriam possuído uma inspiração menos fremente, nem menos incendiária. Pereceram em suas chamas; alguns séculos antes teriam perecido nas da fogueira: cara a cara com as verdades gerais, estavam destinados à heresia. Pouco importa que os devore seu próprio fogo ou o que lhes preparam: as verdades de temperamento devem ser pagas de uma maneira ou de outra.[48]

Uma afinidade crucial entre Cioran e Nietzsche diz respeito ao pensamento musical, à Música como modelo discursivo e existencial. Um outro, igualmente importante, diz respeito à centralidade da doença enquanto matéria-prima do pensamento e nutriente da lucidez. Assim como Baudelaire na poesia, Nietzsche teria introduzido a fisiologia na filosofia: “Com eles, as perturbações dos órgãos se elevam a canto e a conceito. Proscritos da saúde, cabia a eles assegurar uma carreira à doença.”[49] Cioran também aspirou, de certa forma, a “fazer uma carreira na doença”: no caso, a insônia como carreira. Como Nietzsche, ele faz uma correlação entre consciência e enfermidade: o homem é um “animal enfermo”, problemático e disfuncional, dividido entre a liberdade e a felicidade (ou simplesmente dividido), sempre em desacordo consigo, aquém ou além de si mesmo, sem nunca identificar-se com sua phýsis originária; é uma “criatura metafisicamente divagante, perdida na Vida, insólita na Criação”, um “trânsfuga do ser”, “exemplo de antinatureza”.[50] Em La chute dans le temps (1964), Cioran cita Nietzsche nominalmente, no original alemão, para reafirmar sua própria intuição antropológica: “Sempre diferentes, nós não somos nós mesmos senão à medida que nos apartamos de nossa definição, sendo o homem, nas palavras de Nietzsche, das noch nicht festgestellte Tier, o animal cujo tipo ainda não está determinado, fixado.” [51]

Uma divergência crucial entre Nietzsche e Cioran é o fato deste último recorrer, “puramente ao nível antropológico”,[52] ao mito da Queda, à doutrina do pecado original, como hipótese de trabalho acerca da condição humana (Schopenhauer é outro que declara afinidade intelectiva em relação à essa ideia, apesar de descartar, como Cioran, a escatologia que dela se desdobra[53]). Como sustenta Mirko Integlia, Cioran é um “niilista místico atormentado por Deus”:[54] dimensão quintessencial do seu pensamento que o singulariza em relação a Nietzsche, aproximando-o de autores de aspiração religiosa e/ou mística como Kierkegaard e Chestov (sem falar nos místicos de diversas tradições, como o Mestre Eckhart no cristianismo, e Nagarjuna no budismo).[55] A décadence da qual Nietzsche se proclama especialista teria sua origem num “erro de partida” imemorial, em algo que não deveria ter sido (de onde a cantilena popular romena: n-a fost să fie, “não era para ser”); remonta à insubordinação do “animal herético” e sua violação das leis da vida, à insurreição do homem primitivo contra o anonimato “em meio à sesta dos seres”, movido por uma curiosidade malsã que oculta um perigoso “desejo de glória”, a ambição titânica de transformar o saber em poder, logo em instrumento de dominação universal.

Fomos feitos para vegetar, para desabrocharmos na inércia, não para perder-nos pela rapidez e pela higiene, responsável por esse formigueiro de fantasmas em que tudo fervilha e nada vive. […] Deveríamos ter permanecido, piolhentos e serenos, na companhia das bestas, repousar do seu lado por milênios mais, respirar o odor dos estábulos e não o dos laboratórios, morrer de nossas doenças e não de nossos remédios, rodopiar ao redor de nosso vazio e mergulhar docemente nele.[56]

Cioran nunca pôde levar a sério a ideia nietzschiana do Übermensch, ainda que afirme, a título de anamnese, que a ideia em questão lhe pareceu, em sua juventude “nietzschiana”, “tão exata como um dado experimental.”[57] De tanto aspirar à divindade, como um Prometeu esclarecido, o homem periga regredir à animalidade, tornar-se, em vez de “super-homem”, “infra-homem”. Ainda em La chute dans le temps, meditando acerca da civilização, marcada pela “megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal”,[58] Cioran reconhece a importância de Nietzsche e o seu papel decisivo na história do Ocidente, mas por antonomásia: “Nós devemos o diagnóstico de nosso mal a um insensato, mais afetado, mais atingido que todos nós, a um maníaco confesso, precursor e modelo de nossos delírios.”[59]

Outra significativa menção a Nietzsche encontra-se em A tentação de existir (1957), terceiro livro de Cioran em francês. Aí, o filósofo alemão é trazido à baila — como que por uma intenção retórica de deslocamento e contraste — logo nas primeiras linhas de um texto sobre… “o comércio dos místicos”! A caracterização de Nietzsche aqui aplica-se, ponto a ponto, ao próprio autor, como se ele tivesse Nietzsche como uma metáfora de Cioran:

Nada mais irritante do que essas obras que apresentam bem ordenadas as ideias densas de um espírito que se preocupou com tudo excepto com o sistema. De que serve dar uma aparência de coerência às de Nietzsche, a pretexto de que se movem em torno de um motivo central? Nietzsche é uma soma de atitudes, e é rebaixá-lo procurar nele uma vontade de ordem, uma preocupação de unidade. Cativo de seus humores, registou-lhes as variações. A sua filosofia, meditação acerca dos seus caprichos, é erradamente considerada pelos eruditos como portadora de constantes, que se trataria de evidenciar, quando tudo nela as recusa.[60]

Eis, para Cioran, o Nietzsche essencial: à medida de sua idiossincrasia e a serviço da variação de seus próprios humores. Muitos especialistas protestariam: Clément Rosset (1939–2018), por exemplo, sustenta que a beatitude (Seligkeit) é o “tema central e constante do pensamento de Nietzsche, eu diria, de bom grado, tema único.”[61] Afinal, talvez seja isso o que faz o Filósofo: essa busca por uma unidade, a cartesiana vontade de uma “ordem das razões”. Se assim for, Rosset tem garantido o título de Filósofo, ao passo que Cioran não seria senão um escritor que estudou a Filosofia. Mas nada nos garante a infalibilidade destes critérios e pressupostos, há tempos colocados em xeque, abalados em suas bases mesmas — pelo próprio Nietzsche! Cioran deixou registrado, no Breviário de decomposição, um “Adeus à filosofia”, fazendo questão de formular para si, a partir de Nietzsche, a figura do “Antifilósofo” — o que demonstra não estar preocupado em ser reconhecido ou não enquanto filósofo. O que importa, para ele, é criar a partir de si mesmo, mais ou menos como Montaigne afirmara ser ele mesmo a matéria-prima de seus Essais.

Se há em Nietzsche, com efeito, uma vontade de ordem, uma preocupação sistemática de unidade em torno de um motivo central (trate-se do Eterno Retorno, do Amor fati ou do Übermensch), isso é o que menos interessa a Cioran. Eis aqui a divisa pela qual ele se aparta do predecessor alemão. Segundo Blanchot, haveria em Nietzsche duas “falas”, dois discursos distintos e no limite conflitantes: a “fala” fragmentária — do desvio e da deriva, da separação e da singularidade — e a “fala” pedagógica, dialética — “pertence ao discurso filosófico, o discurso coerente que ele às vezes desejou levar a bom termo compondo uma obra de envergadura”,[62] à altura dos filósofos clássicos. No entendimento de Blanchot, Nietzsche teria cedido ao “preconceito comum e, como se tivesse sofrido devido a essa exigência fragmentária, parece ter sido tentado, nos anos em que mais desejou fazer-se entender, a exprimir-se numa linguagem mais tradicional e numa forma mais sistemática.”[63]

É possível que Nietzsche tenha sucumbido, ao final da vida, a essa “tentação de ser compreendido” (de onde o prurido de coerência e coesão, unidade e ordem mais ou menos sistemática), facilitando assim o trabalho de usurpação e falsificação por parte de seus contrafatores. Cioran aprendeu (em sintonia com a reflexão de Blanchot) uma importante lição a partir de Nietzsche (não sem ter experimentado, em sua juventude, a mesma tentação): trata-se da exigência fragmentária, que será conscienciosamente cultivada pelo autor romeno — de onde certa poética do fragmento que faz de Cioran, mais ou menos que um filósofo, um Artista do Verbo. Essa exigência vai de par com uma intuição da condição humana, trágica ou pessimista, que equaciona lucidez e enfermidade, saber e fatalidade, existência e abismo, ser e nada. Em nome dela, Cioran aspirou a uma “santidade do ócio”, a ser “mais inutilizável do que um santo”. Essa declaração de suprema inutilidade, e em certo sentido também de supremo fracasso, pressupõe a afirmação do primado do Artista sobre o Filósofo, pois só aquele — verdadeiro “demiurgo” — é capaz de engendrar novos mundos, ao passo que “não existe filosofia criadora”, a não ser em casos excepcionais, como Nietzsche — que é, naturalmente, “muito mais que um filósofo”. E isso se deve aos seus fecundos desequilíbrios, elevados a canto ou a conceito; tanto a grandiosidade quanto as debilidades de Nietzsche se devem à sua constituição enferma, aos eclipses de sua saúde. Inspirado por Nietzsche, Cioran pretende se “espalhar sobre a realidade, aderir a ela, mas não explicá-la. Assim, paga-se caro o ‘sistema’ que não se desejou”.[64] Nietzsche teria inaugurado a “era dos complexos”: “Suas misérias e histerias nos foram salutares”, reconhece ele. “Nietzsche foi libérateur, porque depois dele pode-se dizer tudo… Agora, somos todos fragmentistas, mesmo quando escrevemos livros de aparência coordenada. O que vai de par com nosso estilo de civilização.”[65]

NOTAS:

[1] CIORAN, Emil, Entretiens, p. 23.

[2] A causa da controvérsia, que no limite remontaria a Platão, é posta em pauta por um importante herdeiro e intérprete filosófico de Nietzsche, o filósofo francês Clément Rosset (1939–2018): “É com efeito a noção de ‘filosofia trágica’ que se encontra no centro do debate. Noção contestada por uma recíproca exclusiva: o trágico não sendo admitido senão a título de não filosófico, e o filosófico a título de não trágico. […] Enfim, ora filósofos, ora trágicos, nunca filósofos trágicos.” ROSSET, Clément, Lógica do pior, p. 18.

[3] CIORAN, Emil, O livro das ilusões, p. 164.

[4] D’Alembert, Jean le Rond, Essai sur la société des gens de lettres et des grands, apud SHEA, Louisa, The Cynic Enlightenment. Diogenes in the Salon, p. 23.

[5] Opinião partilhada por Peter Sloterdijk e Michel Onfray. Numa entrevista, o filósofo alemão afirma: “Nunca fui verdadeiramente cínico. Não possuo os meios para isso. Com efeito, ser um cínico coerente exige qualidades físicas e morais que me faltam. O último grande cínico de nossa época foi Cioran, que levou uma vida monástica informal. Mas ser o monge de um desespero privado custa caro, pois se é confrontado diariamente pelas refutações da própria escolha, à prova de que a felicidade não está tão longe assim, tão transcendente. O cinismo é a decisão de não se dissolver na felicidade.” SLOTERDIJK, Peter, “Le scandaleux”, entrevista com Elisabeth Lévy, Le Point, no 1587,14/02/2003. Disponível em: <http://1libertaire.free.fr/sloterdijk04.html>. Acesso em: 04/04/2020. Quanto ao filósofo francês, ele escreve que “contra a figura do sábio hierático e um pouco enfatuado, o cínico propõe a do filósofo errante. Séculos mais tarde, Cioran expressa certa simpatia por esta maneira de ser, que representa também com uma proximidade ao essencial. Não possuir nada predispõe mais bem a perceber em que consiste o Ser.” ONFRAY, Michel, Cinismos. Retrato de los filósofos llamados perros, p. 69.

[6] CIORAN, Emil, Breviário de decomposição, p. 101.

[7] ZARIFOPOL-JOHNSTON, Ilinca, Searching for Cioran, p 8.

[8] CIORAN, Emil, Breviário de decomposição., p. 77.

[9] IDEM, O livro das ilusões, p. 193.

[10] IDEM, Do inconveniente de ter nascido, p. 122.

[11] IDEM, Carta-prefacio a Fernando Savater, in SAVATER, Fernando, Ensayo sobre Cioran, p. 18.

[12] IDEM, Emil, Silogismos da amargura, p. 42.

[13] BLOOM, Harold, A angústia da influência, p. 23–24.

[14] CIORAN, Emil, O livro das ilusões, p. 193.

[15] IDEM, Silogismos da amargura, p. 35.

[16] NIETZSCHE, Friedrich, “Por que sou tão sábio”, Ecce homo, p. 21.

[17] MARÍN, Joan M., Ciorán o el laberinto de la fatalidad, p. 10.

[18] SLOTERDIJK, Peter, “Le Prieur de l’Ordre de la Sainte Folle Témérité”, Magazine Littéraire, no 508, mai 2011, p. 54.

[19] “Moral: que homem prudente escreveria hoje uma palavra honesta sobre si? — para isso, teria que pertencer à Ordem da Santa Temeridade.” NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da moral, III, § 19, p. 127.

[20] CIORAN, Emil, O livro das ilusões, p. 163–164.

[21] VĂLCAN, Ciprian, La concurrence des influences culturelles françaises et allemandes dans l’œuvre de Cioran, p. 49.

[22] CAMUS, Albert, O mito de Sísifo, p. 36.

[23] COTOFLEAC, Vasilica, “Dimensiones espirituales”, A Parte Rei, no 40, julio 2005, p. 3. Disponível em: <http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/vasilica40.pdf>. Acesso em: 08/03/2020.

[24] À época, a Transilvânia é austro-húngara, de modo que Cioran é, oficialmente, um filho do império bicéfalo. Antes de mudar-se para Bucareste, para começar os estudos universitários, ele precisa regularizar sua nacionalidade romena (sua certidão de nascimento pertence à jurisdição austro-húngara), e pode-se dizer que é só então que Cioran entra, pela primeira vez, em território nacional romeno.

[25] JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme, p. 27, 30.

[26] CIORAN, Emil, Do inconveniente de ter nascido, p. 26.

[27] ZARIFOPOL-JOHNSTON, Ilinca, Searching for Cioran, p. 95.

[28] PETREU, Marta, An infamous past. E.M. and the rise of fascism in Romania. Chicago: Ivan R. Dee, 2005.

[29] “Por que o destino de Nietzsche foi ser entregue a falsários? Por que esse espírito que punha quase que acima de tudo a probidade no espírito de pesquisa deu azo a manobras contra as quais protestara de antemão ao afirmar: ‘Antes de tudo, não me confundam…’ É costume tomarem-me por outro. Prestariam-me um grande serviço protegendo-me de tais confusões.’ Mas ele disse também: ‘Todo pensador profundo teme mais ser compreendido do que mal compreendido.’ De onde vem essa espécie de trapaça que permitiu, não sem boa fé, impor uma compilação de editores como a obra essencial? De preconceitos, e sobretudo daquele grande preconceito que afirma não haver grande filósofo sem uma grande obra sistemática.” BLANCHOT, Maurice, A conversa infinita, vol. II, p. 92–93.

[30] CIORAN, Emil, Breviário de decomposição, p. 12.

[31] IDEM, Ibid., p. 12.

[32] IDEM, Ibid., p. 11.

[33] CIORAN, Emil, “Pensar contra si”, A tentação de existir, p. 8.

[34] IDEM, Silogismos da amargura, p. 35.

[35] VĂLCAN, Ciprian, Op. cit., p. 111.

[36] IDEM, Ibid., p. 114.

[37] CIORAN, Emil, Entretiens, p. 251–252.

[38] IDEM, Silogismos da amargura, p. 34.

[39] VĂLCAN, Ciprian, Op. cit., p. 106.

[40] CIORAN, Emil, Silogismos da amargura, p. 34.

[41] VĂLCAN, Ciprian, Op. cit., p. 106.

[42] BRUM, José Thomaz, “Schopenhauer e Cioran: duas visões romenas”, Ethic@ — Revista Internacional de Filosofia da Moral, vol. 11, no 2, 2012, p. 102.

[43] CIORAN, Emil, O livro das ilusões, p. 210.

[44] IDEM, Ibid., p. 159–160.

[45] IDEM, Ibid., p. 122.

[46] IDEM, Silogismos da amargura, p. 35.

[47] IDEM, Ibid., p. 17.

[48] IDEM, Breviário de decomposição, p. 70.

[49] IDEM, Silogismos da amargura, p. 17.

[50] IDEM, La chute dans le temps, Œuvres, p. 1076.

[51] IDEM, Ibid., p. 1078.

[52] IDEM, Entretiens, p. 26.

[53] SCHOPENHAUER, Arthur, Parerga y Paralipomena, vol. II, cap. 12, § 156a, p. 319–320.

[54] INTEGLIA, Mirko, Tormented by God: The Mystical Nihilism of Emil Cioran. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2019.

[55] A propósito da filiação cioraniana a uma tradição de pensamento existencial de forte pendor místico-religioso, por um viés crítico, cf. O mito de Sísifo, particularmente o segundo capítulo, “Os muros absurdos”, em que Camus tematiza certa “tradição de pensamento humilhado” (Kierkegaard, Chestov, Jaspers) que se distinguiria por seus “sistemas paradoxais que se empenham em fazer a razão tropeçar, como se na verdade ela sempre tivesse andando com passos firmes.” CAMUS, Albert, O mito de Sísifo, p. 36.

[56] CIORAN, Emil, La chute dans le temps, Œuvres, p. 1088.

[57] IDEM, Silogismos da amargura, p. 35.

[58] IDEM, Breviário de decomposição, p. 12.

[59] IDEM, La chute dans le temps, Œuvres, p. 1088.

[60] IDEM, A tentação de existir, p. 119.

[61] ROSSET, Clément, Alegria: a força maior, p. 36.

[62] BLANCHOT, Maurice, “Reflexões sobre o niilismo”, A conversa infinita, II, p. 114.

[63] IDEM, Ibid., p. 94.

[64] CIORAN, Silogismos da amargura, p. 33.

[65] IDEM, Entretiens, p. 22.

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Rodericvs Ignativs

“Tô que nem o meu cachorro no domínio do latim.” (Gvstavo Black Alien)